Wednesday, February 07, 2007

Porta 2 - A história da régua partida

Há histórias que não têm data de validade. Costuma-se dizer que há que ter cuidado com o que se diz às crianças pois elas percebem tudo à letra e ficam a "matutar" nas coisas.

Não sendo uma porta física, as histórias da minha infância estão, sem dúvida, pintadas de saudade.

A história da régua é uma delas. Uma história que ouvi há uns bons 20 anos, que só ouvi uma vez, que até acho que nunca disse ao meu pai (o contador) o quanto fiquei a pensar nela e o quanto ainda hoje penso... essas sim, são as histórias pintadas de saudade que todos temos.

A minha resumia-se assim: "Um dia numa aldeia, a um menino pobre foi oferecida uma régua para ele levar para a escola. O menino ficou muito contente. O menino ía para a escola de burro. No caminho para casa o menino caiu do burro e partiu a régua."

Com um tom de voz daqueles que só os pais sabem fazer, esta história triste de um menino feliz, de uma régua teimosa que nos ensina o que é a perda, o que é a dor de não se poder voltar atrás.
Que nos ensina que afinal nem sempre na vida podemos ter tudo.
Nem tudo se concerta, nem tudo é uma brincadeira, afinal nem tudo chega dado.
Que só nos temos a nós e aos outros, que todas as réguas se partem.
Que o burro não tem culpa, nem a régua e que a culpa é acessória quando a régua já está partida.
Que enquanto uma régua de madeira partida fizer um menino triste a felicidade nunca existirá num estojo dourado.
Que o valor das coisas só existe no peso relativo do que temos.
Que a (in)felicidade dos outros é também a nossa.
E até mesmo nos ensina que por vezes uma régua partida podem ser duas réguas inteiras.

Não soube muitas vezes na vida o que era querer e não ter. Mas soube, sempre que foi preciso, que não se tem só porque se quer.

Foram 2 minutos de uma história que ainda hoje está escrita, em mim, a tinta eterna... assim espero.

Porta 1 - O quarto das maças!

O quarto das maçãs.

Esta porta é daquelas que até tinha uma porta. Digo isto e já me estou a rir... percebe-se bem que tipo de emoções esta porta encerra.

Porta verde, casa de cima, casa do meu avõ em lageosa. Era lá que gostava de dormir com os meus primos rodeados de maças, palha, fitas de puxar as vacas mas que usavamos para fazer fisgas, roupa velha que a minha avó sempre fez questão em guardar e tantas tantas histórias, tantas histórias inventadas que contavamos uns aos outros e ríamos, ríamos como crianças de 10 anos que afinal éramos... mas só ali lhe sentíamos o sentido.

O carlitos dormia aos pés, era o mais novo e tal estatuto não há memória que alguma vez tenha dado previlégios, pelo menos quando o assunto é sério.

O Eduardo, o Michel e eu dormiamos ao comprido.

Planeavamos o dia de amanhã quase sem perceber o quão depressa nos aproximavamos dele. Por vezes até eramos surpreendidos com os primeiros raios de sol e ali estavamos, prontos para mais uma jornada.

O plano não variava muito, e grande parte das noites detinhamos-nos na armadilha de melros que íamos fazer. O Eduardo era brilhante nesta matéria. Acho que em cerca de 6 anos apanhamos 1 ou 2, mas quantas armadilhas, quantas horas de planeamento, quanta mão de obra, quanta matéria prima!!! Deve ter sido aí que aprendi que o caminho é mais importante do que a meta. Além disso os melros eram sempre postos em liberdade depois de os alimentarmos durante uns dias... no fundo eram também umas férias para os melros... piores que as nossas presumo!

Uma porta pintada de saudade verde. Verde da porta, verde das maças, verde da esperança de apanhar um melro... amanhã!

Portas Pintadas de Saudade

São momentos, emoções, lembranças... algumas ainda estão abertas, outras estão lá apenas para nos recordar que existem mas não nos atrevemos a abri-las, ou não as conseguimos abrir, queremos recordar apenas a experiência que foi tal como pensamos que foi, independentemente de assim ter sido.

A vida, ou a riqueza da vida, poder-se-ia medir pela quantidade de portas pintadas de saudade que temos e não pela quantidade de aniversários que tivemos.

Pinto as minhas portas de saudade e procuro outras, novas, fechadas, que eu possa explorar com o entusiasmo e a curiosidade da primeira vez.

E só tenho medo de um dia não haver mais portas para abrir ou que não seja eu capaz de as abrir, por inércia ou incapacidade... medo da angustia de estar num hall de portas velhas, pintadas de uma saudade sem cheiro, sem cor, sem tacto... uma saudade quase invisível pois nem a lembrança se lembrou de a lembrar.

Vou abrir mais uma porta mas não vou espreitar... vou antes, de olhos vendados pela minha própria mão, cheira-la primeiro, e só depois toca-la ao de leve de lés a lés, ouvi-la a contar o mundo que vê.

Depois sim, autorizado a entrar, com a intimidade de quem se sente em casa, abrirei os olhos e estarei perante mais uma porta que um dia pintarei de saudade, na esperança de que nunca se lhe esbata a cor.