Tuesday, March 06, 2012

Capitulo 2

Senhor narrador, peço desculpa, mas permita-me que conte a minha versão... eu não sou homem de interromper os outros e tenho todo o respeito por si e pelo seu trabalho, mas o leitor certamente gostará de ouvir o ponto de vista de alguém que lá esteve e presenciou, de alma e corpo e mais tudo o que tinha, a cena por si tão eloquentemente descrita. E se alguém lá houve nessas condições esse alguém fui eu como o senhor narrador tão bem sabe.

Foi mais ou menos assim... Não passavam sequer três minutos das 12:00 quando finalmente me desembaracei do carro em cima de um passei qualquer. Não sou de estacionar mal o carro, mas a escola naquele dia parecia a feira de cascais e eu estava num estado de nervos pouco dado a minudências, apesar de as adorar, e é verdade que as adoro, podem perguntar a quem melhor me conhece, mas naquele dia não estava para isso.

Aproximei-me do portão de entrada onde um senhor de 50 anos, mais portão menos portão, dava andamento às gentes que para ali andavam, parecia uma entrada de cinema mas sem bilhete nem lugar marcado, era sempre a aviar. Eu não sou de coisas “sempre a aviar”, mas aquela não era a minha festa. Vocês até já sabem de quem era a festa por isso não perderei muito mais tempo com isso que o dia não está para minudências.

“Boa tarde! Para a festa de despedida da...” – disse eu ao portão. “Sim, sim, é em frente e depois à esquerda, fique à espera no atrio ao pé dos outros para depois irem todos juntos”. Repetiu o Sr. Jaime pela quinquagésima vez já com pouca paciência. Só havia um último dia de aulas por ano mas eram sempre os dias de maior trabalho, eram os pais que vinham aos pares para entregar uma lembrancinha, ou os miudos que andavam mais à solta que nunca, e acima de tudo o calor, esse calor insuportável de final de Junho a torrar o miolo de quem passa o dia ao sol a abrir e fechar uma porta de metal.

Mas hoje não era só o último dia de aulas do ano, era também, e vocês já o sabem, o dia da reforma da professora Sandra e uma data de graúdos veio para as despedidas, 3 ou 4 desses graúdos até pareciam mais velhos que ela mas enfim, ele nunca foi homem de pedir BIs à porta muito menos a gente de barba branca.

Não era que o Jaime não gostásse da professora Sandra, mais tarde vim a saber que até tinha por ela um respeito muito acima da média, mas naquele dia estava chateado, só isso, mal-disposto com a vida, provavelmente já tinha saudades dela, ou tinha saudades dele e do seu último dia que nunca mais chegava, estava há 28 anos agarrado à porra da porta de metal. Eu também não sou de dizer porras, podem perguntar a quem me conhece, mas um dia não são dias.

Ignorei a aparente falta de paciência do Sr. Jaime e atentei apenas nas instruções que me dera, o coração apertava-se-me a cada passo, não sabia se a professora Sandra me iria reconhecer, já tinha passado tanto tempo... ao virar a esquina parecia aproximar-me de uma reunião de pais. Um novelo de adultos envolvia-se em abraços desconexos “joana, és tu, estás tão diferente!!” pudera, tinham passado 30 anos desde a 4ª classe. Os mais preparados traziam fotografias da época “ai que caixa-de-óculos! Esconde-me isso pá”. Não reconheci ninguém mas juntei-me ao grupo e ía acenando com a cabeça e sorrindo o melhor que sabia, apesar de saber pouco. Também não sou de sorrir, sou mais de minudências, mas o dia não estava para elas, estava só para sorrisos nervosos e acenos descomprometidos.

No meio do grupo destacava-se uma rapariga loura, alta, muito mexida que segurava o que parecia ser uma tela grande. Devia ser a Silvia, a dos emails, uma mulher que não teria ainda 30 anos, fora também aluna da professora Sandra e a grande dinamizadora desta homenagem. Foi ela que começou esta bola de neve que depois, com a ajuda da escola e de outros antigos alunos, se veio a concretizar num mega ajuntamento da malta que passou pelas mãos da Sandra... tal como eu! Não pude deixar de sorrir ao pensar nisso, desta vez era um sorriso sincero. “Será que ela me segurou nas mãos?”

Após cinco longos minutos de falsos piropos para cima e para baixo, apareceu a directora da escola, julgo que se chamava Elizabete, mas não posso garantir, seja como todas as directoras de escola se deviam chamar Elizabete que é um género de uma mistura entre o rigor e o respeito de uma Elisa com a ternura e a compreensão de uma Beta. Pediu silêncio e disse que estava na hora de irmos para a Sala. A professora Sandra não sabia da surpresa e por isso iriamos em silêncio e em fila indiana. A directora entraria primeiro na sala e depois todos nós a seguiriamos.

Senti algum conforto no meio daquela fila indiana, gosto de filas e de coisas organizadas em geral, mas não deixei de estar nervoso, bolas que o coração parecia ter vida dentro. Éramos sem dúvida mais de 50 antigos alunos, ou melhor, eram, eles, antigos alunos, eu era filho dela, o filho que ela não quis e deu para adopção quando tinha já 29 anos, o filho que ela nem sequer sabe se ainda vive, como se chama, ou com quem se parece.

Quando a directora Elizabete abriu a porta o meu coração bateu como nunca, parecia que ía nascer outra vez, estava prestes a reencontrar a minha mãe pela 2ª vez. Mas desta vez ela iria estar feliz por me ver, não por me ver a mim especialmente mas sim a todos e a mim também ali misturado nos antigos alunos. Eu sabia que ela não iria estranhar não reconhecer as caras todas, afinal tantas caras lhe passaram pela sala de aula... mas só um lhe passou pelo ventre, será que ela reconhece esse? Não. É impossível! A não ser que os meus olhos me traiam.

Entrei na sala, já era um dos últimos da fila por isso já era tarde para assistir ao efeito surpresa, agora vivia-se o efeito euforia. Abraços para aqui, empurrão para ali “joaquim, és mesmo tu, tás um homem!!” claro que está um homem, tem quase 50 anos, pensei eu. A minha mãe era como a tinha visto nas fotografias, raio da mulher parece que nunca envelheceu. Mas a voz, a voz era uma novidade para mim, era seca mas doce, pausada, imaginei-a tantas vezes a dizer “não o quero, façam favor de levar esse bebé daqui para fora”. Como será que ela o teria dito? Ao menos agora já conhecia a voz, só me faltava saber exactamente as palavras que usara.

A minha vez de a abraçar aproximava-se e eu estava a ficar dominado pela raiva e não pelo amor ou curiosidade ou qualquer outra merda que fosse minimamente positiva. Como é que ela me deixou e agora anda aqui toda sorrisos para esta gente que dela não tem nada. Nem sequer me vai reconhecer, e ri-se feliz, nem sequer deve pensar em mim, lembrar-se-á que um dia teve um filho? Por momentos quis ir embora, parecia não fazer sentido estar ali, eu que jurei que hoje ía ser um dia bom! Fiquei para trás para me acalmar, ainda bem que éramos muitos.

A loura alta ía tomar a palavra e arranjava espaço para entregar a tela, afinal era um quadro com fotografias e uma frase ao meio. Ergueram-no e encostaram-no à parede. Porra, estava assinado “dos antigos alunos”, se calhar eu também devia ter trazido uma porcaria qualquer, um postal assinado dos “antigos filhos”, era eu, era só um, mas bolas, também tinha direito a dar qualquer coisa à velha... tinha prometido que ía ser um dia bom, encostei-me para trás e calei-me como faria um antigo aluno mais tímido sem vontade de aparecer.

Ao ler o quadro a velha, a minha mãe, a professora Sandra, chorou, nunca a tinha visto a chorar, mas também nunca a tinha visto a rir, nunca a tinha visto bolas, isso vocês já sabem, eu é que não sei, ou esqueço-me ou não quero saber, enfim... chorou, chorou muito... e eu chorei com ela.

Foi a primeira coisa que fizemos juntos, mãe e filho, separados por poucos metros, juntos a chorar, e nisto um mar de gente desconhecida entre nós como actores sem convite no maior de todos os dramas da minha vida.

Fiquei a vê-la, como se fosse a primeira vez, e era, mas como se não a conhecesse, e não conhecia, mas como se não tivesse sobre ela qualquer opinião ou julgamento, e isso tinha, e tanto, mas tentei ver a professora Sandra, não a minha mãe.

Sandra começou a falar... “não sei o que dizer! Estou obviamente emocionada, nunca imaginei que este dia fosse tão dificil, e vocês ainda o vieram tornar mais dificil seus malandros” riu entre lágrimas e fez os outros rir também, todos de sorriso à banda a olhar a professora indefesa, num misto de honrada e humilhada, quase divina e quase patética. “não sei mesmo o que dizer, obrigado! Muito obrigado” e agarrou-se à Silvia que era quem estava mais perto e de braço estendido como quem tem tudo mais ou menos planeado.

Os miudos, os verdadeiros miudos, levantaram-se para abraçar a professora e ela acolheu-os a todos, parecia tão meiga e interessada nas crianças., nas dos outros, claro!

“Pessoal!!” diz a Silvia de voz apontada ao tecto.. “trouxe um livro de assinaturas em branco para cada um escrever umas linhas e no fim o oferecermos à professora Sandra” e lá pôs novamente o seu sorriso de quem sabe sempre o que vem a seguir.

Quando vi o livro à solta aproximei-me, ainda de costas encostadas a uma parede invisivel certificando-me que ninguém me via ou reparava que eu era estranho, ou sentia estranho, ou andava estranho. Cheguei ao livro e este estava praticamente todo rabiscado e a custo descobri um cantinho onde ainda havia espaço para mim, engraçado continuar a ter de batalhar com esta malta toda por um espaço para mim, e acaba sempre da mesma maneira, comigo a saborear um restinho de espaço que só lá ficou por esquecimento ou por ser demasiado escondido... lá encontrei o meu cantinho, devia dar para 2 ou 3 linhas se fizesse letra pequenina. E ía fazer, o que tinha para dizer não se diz aos gritos, diz-se baixinho, a letra curta, com pouca tinta, como se se quisesse apagar.

“Querida Professora Sandra, desejo-lhe muitas felicidades, que a sua reforma lhe traga sobretudo tempo para que possa estar junto da familia e dos que mais gosta. Assinado, o Seu Filho Artur”

Tremia por todos os lados, escondia-me com o meu próprio corpo e como podia, mas não podia. Todo eu dizia sem dizer “não estou aqui, não estou a escrever isto, vocês não me estão a ver” e não estavam, mas eu estava a vê-los a verem-me, estava a vê-la a ver-me, a tocar-me, a sorrir-me a abraçar-me a querer-me, e eu não queria, queria ser eu a mandar, decidir eu o quando e o como. Não haveria de ser ela a decidir, desta vez não seria ela a decidir, eu tinha um plano bolas, e dos bons, e era ali que ele começava. Era normal estar nervoso, mas não ía errar.

Sr. Narrador, faça favor de continuar e prometo não mais o interromper. A não ser que deixe de ser fiel à verdade das coisas. Peço-lhe também que dê a devida atenção e o devido valor às minudências pois esta história não deve ser narrada pela rama.

Professora Sandra - Capitulo 1

Um rio de lágrimas nos olhos, hirta, cravada no chão como os móveis velhos e pesados da escola primária, que um dia já foi escola piloto... também ela já tinha sido nova, e piloto, e à descoberta.

A professora Sandra olhava de frente uma turma inteira em choque... 20 miudos de 9 anos olhavam-me como se a vissem pela primeira vez. “A professora chora como nós” pensavam alguns... “passou-se”, pensavam outros menos dados às coisas do coração.

Era o seu último dia de aulas, o fim da linha, o último dia antes da merecida, mas temida, reforma! Sandra não sabia o que dizer e por isso chorava um choro descontrolado que até o seu corpo parou para assistir.

Sandra não era uma professora qualquer. “és mesmo parva” disse-lhe um dia a tutora numa avaliação do seu estágio. Sandra nunca deixou de ser “parva”, deixou foi de o ouvir dos outros. Ela sabia que “ser parva” fazia parte de ser meiga, preocupada, generosa e incondicionalmente dedicada aos seus meninos. Se isso era ser “parva” então era-o, e com muito orgulho!!

Ao longo de 45 anos de carreira nunca deixou nenhum menino para trás. Às vezes ouvia na sala de professores que este ou aquele não davam para a escola e isso sim enfurecia-a. “não dá para a escola ou a escola é que não dá para ele?” perguntava ao colega no alto do meu metro e meio mal medido, dedo em riste e maças do rosto excessivamente rosadas.

Apesar de não ser mulher de se ficar, também nunca foi gente de deixar ninguém KO, a não ser o Vitor, esse cromo cujo talento pedagógico caberia debaixo da unha de um mindinho e que teimava, avaliação após avaliação, a qualificar os meninos com nomes de animais. Os burros, os porcos e os que tinham cara de chimpazé iam sempre parar às turmas do professor Vitor.

Claro que um dia isto acabou e o malfadado pedagôgo fez-se à vida, dizem que foi viver para o campo, aconteceu no dia em que entrou na sala e sentiu a porta trancar-se à chave lá fora. Dentro da sala não havia crianças, apenas dois javalis machos que olharam o professor Vitor como quem diz “não sei se és tu o responsável de estarmos aqui, mas como és o único que aqui estás é contigo que nos vamos zangar”... após dez longos minutos de pânico protegido ora por mesas, ora por cadeiras e armado de régua e esquadro, Vitor ouviu o trinco da porta. Correu o mais que pode e conseguiu alcança-la momentos antes de um dos Javalis nela cravar as suas presas. Vitor nunca soube quem foi o autor da façanha, mas também não deu a si próprio muito tempo para investigar, cinco minutos depois esvaziava o seu cacifo e dava um último olhar ao livro de ponto onde estavam fotografias de todos os seus alunos, todos obviamente lhe pareciam ter cara de javali.

Sandra sempre fui assim, aquela que se levantava quando todos se deixavam ficar sentados, mas também aquela que se calava e ouvia quando todos insistiam em falar ao mesmo tempo. Sim, sempre foi parva, diria a sua tutora do primeiro ano de estágio.

Foi tão parva que nunca percebeu que dar aulas era a sua profissão, não a sua missão. Depois da escola reunia em casa os miúdos do bairro que tinham mais dificuldades em aprender, aqueles para quem a escola não dava, ou os que eram presentiados com professores Vitores. Tratava-os por “filhos” e “filhas”, e dizia amiude “estás a criar o teu futuro filho, não deixes que ninguém, nem sequer um professor, te tire esse direito”.

Naquele último dia todas estas recordações lhe vieram à mente, aqueles segundos de choro descontrolado, de pés cravados no chão e alma entregue àqueles 20 filhos e filhas que representavam as centenas que por ali já tinham passado, pensava que podia ter feito mais, “os futuros salvam-se um a um e eu podia ter salvo mais uns quantos”. Sentiu então uma mão no ombro, depois outra, e logo mais uma, e quatro e tantas... viu-se chão num abraço de adultos, e estavam muitos, tantos, e por trás deles uma placa dourada cobria o quadro e lá se lia “para a nossa professora Sandra, que acreditou, antes de nós, que podiamos criar o nosso futuro”, assinado: os seus antigos alunos!

Tinham vindo muitos, uns traziam barba, outros traziam filhos, a Rosário trouxe duas netas, já não se distinguiam os meninos dos adultos, todos riam, felizes, um a um!