Tuesday, March 06, 2012

Professora Sandra - Capitulo 1

Um rio de lágrimas nos olhos, hirta, cravada no chão como os móveis velhos e pesados da escola primária, que um dia já foi escola piloto... também ela já tinha sido nova, e piloto, e à descoberta.

A professora Sandra olhava de frente uma turma inteira em choque... 20 miudos de 9 anos olhavam-me como se a vissem pela primeira vez. “A professora chora como nós” pensavam alguns... “passou-se”, pensavam outros menos dados às coisas do coração.

Era o seu último dia de aulas, o fim da linha, o último dia antes da merecida, mas temida, reforma! Sandra não sabia o que dizer e por isso chorava um choro descontrolado que até o seu corpo parou para assistir.

Sandra não era uma professora qualquer. “és mesmo parva” disse-lhe um dia a tutora numa avaliação do seu estágio. Sandra nunca deixou de ser “parva”, deixou foi de o ouvir dos outros. Ela sabia que “ser parva” fazia parte de ser meiga, preocupada, generosa e incondicionalmente dedicada aos seus meninos. Se isso era ser “parva” então era-o, e com muito orgulho!!

Ao longo de 45 anos de carreira nunca deixou nenhum menino para trás. Às vezes ouvia na sala de professores que este ou aquele não davam para a escola e isso sim enfurecia-a. “não dá para a escola ou a escola é que não dá para ele?” perguntava ao colega no alto do meu metro e meio mal medido, dedo em riste e maças do rosto excessivamente rosadas.

Apesar de não ser mulher de se ficar, também nunca foi gente de deixar ninguém KO, a não ser o Vitor, esse cromo cujo talento pedagógico caberia debaixo da unha de um mindinho e que teimava, avaliação após avaliação, a qualificar os meninos com nomes de animais. Os burros, os porcos e os que tinham cara de chimpazé iam sempre parar às turmas do professor Vitor.

Claro que um dia isto acabou e o malfadado pedagôgo fez-se à vida, dizem que foi viver para o campo, aconteceu no dia em que entrou na sala e sentiu a porta trancar-se à chave lá fora. Dentro da sala não havia crianças, apenas dois javalis machos que olharam o professor Vitor como quem diz “não sei se és tu o responsável de estarmos aqui, mas como és o único que aqui estás é contigo que nos vamos zangar”... após dez longos minutos de pânico protegido ora por mesas, ora por cadeiras e armado de régua e esquadro, Vitor ouviu o trinco da porta. Correu o mais que pode e conseguiu alcança-la momentos antes de um dos Javalis nela cravar as suas presas. Vitor nunca soube quem foi o autor da façanha, mas também não deu a si próprio muito tempo para investigar, cinco minutos depois esvaziava o seu cacifo e dava um último olhar ao livro de ponto onde estavam fotografias de todos os seus alunos, todos obviamente lhe pareciam ter cara de javali.

Sandra sempre fui assim, aquela que se levantava quando todos se deixavam ficar sentados, mas também aquela que se calava e ouvia quando todos insistiam em falar ao mesmo tempo. Sim, sempre foi parva, diria a sua tutora do primeiro ano de estágio.

Foi tão parva que nunca percebeu que dar aulas era a sua profissão, não a sua missão. Depois da escola reunia em casa os miúdos do bairro que tinham mais dificuldades em aprender, aqueles para quem a escola não dava, ou os que eram presentiados com professores Vitores. Tratava-os por “filhos” e “filhas”, e dizia amiude “estás a criar o teu futuro filho, não deixes que ninguém, nem sequer um professor, te tire esse direito”.

Naquele último dia todas estas recordações lhe vieram à mente, aqueles segundos de choro descontrolado, de pés cravados no chão e alma entregue àqueles 20 filhos e filhas que representavam as centenas que por ali já tinham passado, pensava que podia ter feito mais, “os futuros salvam-se um a um e eu podia ter salvo mais uns quantos”. Sentiu então uma mão no ombro, depois outra, e logo mais uma, e quatro e tantas... viu-se chão num abraço de adultos, e estavam muitos, tantos, e por trás deles uma placa dourada cobria o quadro e lá se lia “para a nossa professora Sandra, que acreditou, antes de nós, que podiamos criar o nosso futuro”, assinado: os seus antigos alunos!

Tinham vindo muitos, uns traziam barba, outros traziam filhos, a Rosário trouxe duas netas, já não se distinguiam os meninos dos adultos, todos riam, felizes, um a um!

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